9/24/2004
Post interativo
Arma Virumque Cano, ou Leitura Dinâmica
Ia escrever um comentário no post esse do LLL, mas não tive tempo e o assunto ficou fermentando na minha cabeça, até virar um post ela mesma. Para começar, devo dizer que o post dele é bom e concordo com a maior parte do que diz.
Essa fixação (que segundo o Alexandre é tipicamente ocidental, mas não me arrisco) pela visão tem um bom exemplo, acho, nos cursos de leitura dinâmica que hoje em dia não fazem tanto sucesso quanto na última década. O propósito destes cursos é agilizar a leitura pela eliminação do instante em que “falamos”, internamente, a palavra lida – ou seja, eliminar o processo em que víamos e reconhecíamos as letras, terminando por ouvir na cabeça o seu som; ao invés disso, veríamos a palavra e a imagem das letras seria cerebralmente associada, pela prática, com a idéia representada.
Eu chamaria a leitura feita desta forma de Código Morse. Mas não vai dar tempo, estamos quase na metade do post e a parte interativa ainda nem começou.
No meu caso, o sentido que tenho mais desenvolvido é a audição. Não troco ouvir as palavras que leio por nada; gosto de imaginar a voz do narrador e dos personagens, e atribuir ao som de um texto um significado próprio, além do escrito, que ajuda a contar a estória - Leiam o primeiro parágrafo de Lolita, do Nabokov (em inglês, pelo amor de Deus), que pela perfeição sonora quase resume o romance. Como já disse, não troco esta modalidade de leitura minha (e da maioria, creio) por nada.
O que os vendedores da idéia não falam é como a pessoa vai entender trocadilhos, estudar música, compreender metáforas, ler poesia (digo, aquelas com métrica e rima, ou pelo menos algum ritmo, alguma musicalidade) se ela lê a palavra “casa” e esta imagenzinha, formada por uma letra depois da outra, é imediatamente transformada em um pensamento sobre uma casa real, sem passar pela fonação do vocábulo – veja só: Feche os olhos e fale “casa” ou “borboleta” ou “pão”, com a melhor pronúncia que conseguir. Experimente bem a sensação; tente com outra palavra. Repita algumas vezes (não exagere).
Viu? Agora faça o seguinte: Eu vou escrever uma palavra aí embaixo. Olhe para ela (você vai ler, é óbvio, pelo método a que está afeito) e apreenda seu significado. Será tijolo a palavra; olhe para ela agora e veja em seguida um tijolo, sem ouvir o som de “tijolo” na mente. Pronto?
TIJOLO
De novo:
TIJOLO TIJOLO TIJOLO TIJOLO
TIJOLO TIJOLO TIJOLO TIJOLO
TIJOLO TIJOLO TIJOLO TIJOLO
TIJOLO TIJOLO TIJOLO TIJOLO
Compare as sensações causadas pelas duas leituras. A segunda tem grandes chances de ser mais rápida, concedo – mas vale a pena terminar de ler os Lusíadas em meia hora, mas não ir além do conteúdo significativo do texto - por ter perdido o barco sonoro que, por mares nunca de antes navegados, nos leva ainda além da Taprobana?
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(agora que o post terminou, com licença: Leitura visual é Código Morse.)
9/09/2004
Soneto
delira. Crê-se livre e quer impor-se
como modelo ao outro, vê-se alado,
acredita viver pelo que o torce.
E grita. Não de dor, sujo pecado
supor que dói vestir de um deus a cor, se
(pois é um deus que o tem esmagado)
é não viver assim o que distorce
as almas dos que não servem ao deus.
- E quem é este deus?, pergunta a turba;
responde o morto: - É o único que há.
Um monstro tal é o mundo, e os seus
numerosos enganos, que perturbam
a paz dos que não usam se enganar.
9/01/2004
Mulheres feias
Já uma mulher feia, sempre quase burra ou mediana (duvido da existência de feias inteligentes ou burras demais), vai bocejar ouvindo Debussy, perguntar se você levou o lixo para fora no meio de uma ária de Haendel. Como são práticas essas mulheres feias; sonham em ter controle de tudo, associam sua distração usual com preguiça, chamam de vício em cafeína seu café, como se este não tivesse além da cafeína o cheiro, o sabor, a temperatura desejados. Riem somente de piadas vulgarmente primárias.
Não sou um polemista competente, confesso. Eu deveria escrever sobre todas as mulheres feias, impiedosamente, mas nem vos dou a chance de me fustigar: Eu sei que existem exceções e eu sei que beleza é um conceito relativo. A mulher feia, porém divertida, foi vista recentemente no Himalaia, andando junto com o Iéti, sujeito este muito espirituoso. Sobre a relatividade da beleza, bem, vocês me pegaram. Infelizmente (não para mim), a beleza não é relativa não, a beleza é um conceito bem do absoluto, eterno e imutável, e eu sou bem preconceituoso de achar que tudo que não é belo feio é.
Quem ama o feio o vê como se fosse belo, dizem-me os gênios familiares. Ah, fantasmas de sabedoria que não viram Nina pondo-me as mãos no pescoço, isso nada tem a ver com amor – Isso é anticristão, chego a dizer. Manda-nos o evangelho amar a todas as pessoas; se consideramos belos todos que amamos, não queremos de forma alguma que mudem. E se não queremos que o doente se cure, que o pecador se converta, para que serve tal amor? A doença e o pecado são feios, e o reino de Deus é o fim da feiúra.
Todos os problemáticos têm seus segredos, conhecidos tanto quanto nunca referidos pelos demais: os malas, os anti-sociais, os doentes em estado terminal; todos eles antes de dormir sofrem por algum motivo – carência de atenção durante a infância, trauma permanente; impotência ante a morte, vida irrealizada; o segredo das mulheres feias e chatas deixo para a investigação de algum Jacques Costeau temerário, mais apto a sobreviver nos maiores ermos da convivência humana que eu, que não largo mes petits plaisirs cotidianos.
